Eu tinha acabado de sair da minha prova de francês. Estava no terminal esperando meu onibus. Garoava, pra variar (não sei o que deus inventou dessa vez pra chover em agosto, setembro, e outubro, só falta não chover no meu aniversário... sempre chove quando eu quero fazer festinha) O plano era pegar o Cidade Universitária e passar a tarde pesquisando as mil coisas que tenho que pesquisar, lendo as mil coisas que tenho que ler, ou escrevendo as mil coisas que tenho que escrever. Daí eu lembrei que tem um cachorro morto, em decomposição, no caminhozinho da faculdade até em casa, o qual, estava alagado. Perdi toda a vontade de ir pra faculdade, então esperei o Cavallari por mais 15 minutos. Imaginando que a única coisa que teria para fazer em casa seria assistir o final alternativo de Casanova e a Revolução, ou ler Hannah Arendt, passei no Nativo e comprei um vinho Natal, bem seco, e um chocolate Talento Intense, bem amargo e me preparei para me entregar a leitura do tal 'Vida de Gato'. Coloquei vinho e gelo na minha caneca do Jack, coloquei um caderno em cima da cama (pra apoiar a caneca e ser manchado, no lugar do meu lençol de bolinhas). Tirei meu tênis molhado, minha meia molhada e minha calça molhada (tava uma chuva do caralho a hora que saí de casa). Sequei meu pé. Entrei embaixo do cobertor. Deixei uma caneta e a notinha fiscal da recente compra do meu lado, caso quisesse fazer alguma anotação. Li a contra-capa. Li as orelhas. Li os dois primeiros capítulos. Já tinha terminado o espaço para anotações na notinha. E já estava dizendo 'putaqueopariu' será que é isso que vai acontecer da minha farra, chamada vida?
(Droga, a primeira caneca acabou)
Na verdade, ontem dormi e hoje acordei pensando em uma só palavra. Libertinagem. Será que é essa a palavra-chave? Libertinagem pra mim significa porra-loca. Ok, eu não sou das pessoas mais certinhas. Eu não dobro minhas roupas, aliás, eu não passo as minhas roupas. Eu não arrumo a minha cama. Eu não organizo meus livros por tamanho. Eu não me importo em tomar banho todos os dias. Eu uso as mesmas camisetas por dias, e o mesmo sutiã por semanas. Eu bebo. Já dei umas tragadas em alguns cigarros por aí. E daí? Mãe, juro que não sou porra-loca. Minha vida, minha existência, sei lá do que chamar isso, não é só libertinagem. Limites? Eu nunca impus limites, nem a mim mesma, nem a ninguém. Não me sinto nesse direito. Pedro, lembra quando a gente estava bebendo na praça e eu disse que não obrigaria meus filhos a serem vegetarianos, só porque eu considero errado matar animais? É mais ou menos isso...Mãe, juro que você me passou uma bela noção de certo e errado, e que se eu faço tudo que faço (assim parece que eu faço um monte de coisas, que eu me pico, de certo...) Enfim, eu não considero errado. E não dou a ninguém o direito de ficar bravo comigo por causa disso.
Eu não tenho limites, mas eu tenho noção. Até abrir a garrafa de vinho eu estava considerando se não seria esse meu limite. Se não seria a hora de permitir que alguém me dissesse o que fazer e o que não fazer. Se eu não precisava disso. Mas não. Citando a tal Clarah: "Eu grito. Grito para dentro e para fora. Me atiro de cabeça em aguás turbulentas, escalo montanhas, nado nos canais mais perigosos. Preciso estar no limite."
Eu não preciso de limite. Preciso estar no limite. E aqui é o limite.
E agora, dou um passo pra trás? Dou um passo pra frente? Ou fico aqui parada?
"desculpe, amigo fígado, você é muito simpático, mas hoje não vai dar"
"Quero gritar, gritar por todos os poros, pedir ajuda pra te chacoalhar, pra te acordar dessa vida morta que você escolhe todos os dias."