Eram 11 horas da noite de sexta-feira. Já tinha tido uma overdose de anti-alérgico. Já tinha reclamado da minha inabilidade de concentração e impossibilidade de ficar sentadinha enquanto o professor falava, mesmo que fossem coisas que me interessassem. Já tinha me entupido de comida não saudável. E agora anunciava minha urgente necessidade de esvaziar a bexiga urinária, que já reclamava seu entupimento também. Atravessava a rodovia em direção a mesma casa que muitas vezes me dirigira antes. Muitas pessoas vestindo batas feias e caras que lhes permitia chegar até determinado lugar, variando a cor da vestimenta até onde poderiam chegar de acordo com o tanto que a mesma lhes custara. E ali, naquele canteiro que divide a rodovia na direção de quem vai pra lá e na direção de quem vem pra cá, estava deitado, imóvel, inerte e urinado um homem. Botas, calça jeans amarrotada, suja e carcomida, camisa de propaganda de deputado, ou de supermercado, não sei (como se houvesse diferença). As pessoas passavam, de lá pra cá, pra lá e de cá como se nada notassem de diferente.
Como diabos o homem fora parar ali não se fazia ideia. Se estava vivo ou morto não se fazia ideia. A bexiga apertava e não se fazia ideia até quando aguentaria. Então fui cuidar das minhas urgências enquanto me perguntava como diabos o homem fora parar ali e sua condição de ser vivo ou de ex-ser vivo. Não é o tipo de coisa que se deixa de pensar rápido. Pelo menos pra mim. Não sei quanto as outras pessoas que naquele momento começavam a ver a dupla sertaneja com seus microfone falando coisas que não me fazem sentido no palco.
Voltei a beira da rodovia. Liguei pra polícia. "Emergência da polícia militar. Como posso ajudá-lo?" "Oi. Eu estou aqui em tal lugar e tem um homem deitado no canteiro do meio da rodovia, não sei se morto ou vivo." "A senhora consegue visualizar o cidadão?" "Consigo, mas não vejo se respira ou não." "A senhora poderia rtocar nele para ver se reage ao toque?" "Nem a pau. Tenho medo." "Óquei. Encaminharei uma viatura para o local. Se o cidadão se levantar, saia de perto e ligue novamente."
Oi? A senhora não entendeu que ele está no meio da rodovia? Se ele levanta ele morre! Isso se já não estiver morto.
Passaram 40 minutos. Nenhuma viatura apareceu. Eu de pé na beira da rodovia.
Liguei novamente. Dessa vez fui posta na espera. Tocava aquela valsa de caixinha de música, do tema de Love Story, mas parecia o fundo sonoro de Pac-Man. "Emergência da polícia militar. Como posso ajudá-lo?" "Oi. Eu liguei há meia hora porque tem um homem deitado no canteiro do meio da rodovia, não sei se morto ou vivo. Vocês falaram que mandariam uma viatura mas ainda não apareceu ninguém." "A senhora já tentou ligar para o Resgate no 193?" "Não" "A senhora poderia tentar?" "Oquei."
Oi? O senhor não entendeu que a responsabilidade está nas suas mãos?
Liguei pro 193. "Resgate. Como posso ajudá-lo?" "Oi. Eu liguei pra polícia porque tem um homem deitado no meio da rodovia eles pediram pra ligar aí. Eu estou em tal lugar. Faz mais de meia hora e ele ainda não se mexeu. Não sei se está respirando. Tem como vocês mandarem alguém?" "A senhora poderia tocar nele pra ver se reage ao toque?" "Não, eu não vou relar em ninguém que acho que está morto no meio da rodovia." "Senhora, no momento todas as ambulâncias estão ocupadas. Vou pedir o suporte do SAMU, deve estar aí dentro de alguns instantes."
Oi?
Depois de 10 minutos chega um policial rodoviário. Fala que estava atendendo um acidente na estrada para Oriente, mas que mandara o carro do guincho vir procurar a ocorrência. O carro de guincho que no caso passara duas vezes por nós mandando beijinho e chamando "Gostosa". O policial achou muito engraçado. Eu não achei graça nenhuma. Seu guarda, apelido carinhoso, apontou sua lanterna para o que chamava carinhosamente de cidadão e afirmou "É um bêbado, tá em coma alcóolico. Se aproximou. Apontou a lanterna muito muito potente na cara do homem. Gritou. Deu um cutucãozinho com o pé. Apontou a lanterna muito muito potente no tórax e nos informou. "Viu, tá respirando. É um bêbado mesmo." Entrou na viatura, pegou seu radinho e chamou a central pedindo por uma ambulância. Informado de que não tinha nenhuma disponível, gracejou "E caminhão de lixo, tem?" Ele achou muito engraçado. Eu não achei graça nenhuma. Perguntei se podia ir embora. Tinha receio de ter de prestar depoimento. Ele respondeu que claro, podia sim.
Fui embora quando o SAMU chegou. Ainda não sei como o homem bêbado conseguiu chegar ao meio da pista para entrar em coma alcóolico no canteiro. Ele no mínimo teve que atravessar um sentido de rodovia nesse estado e no mínimo pretendia atravessar mais três. Alguém me explica?
Tomei um sandei de caramelo da promoção mc donalds e fui fingir que nada tinha acontecido. Fui brincar de noite mariliense da depressão.